sábado, 11 de junho de 2016

ERA O DIA DOS NAMORADOS, “E TENDO AMADO OS SEUS AMOU-OS ATÉ O FIM”

ERA O DIA DOS NAMORADOS,
“E TENDO AMADO OS SEUS AMOU-OS ATÉ O FIM”

Estávamos no último dia de retiro de encerramento do semestre com os seminaristas, em casa de veraneio, ainda almoçando por volta das treze horas, do dia 12 de junho de 2007. Alguém de casa me liga, desesperada, sem conseguir dizer ao certo o que queria. Pensava que não conseguia ouvir e entender pelo converseiro à mesa, e me dirigi para o jardim da frente, onde temos uma imagem de Nossa Senhora das Graças, devoção de minha mãe. Pedi então que passasse o celular para ela, que já me atendeu dizendo aos prantos: “seu pai faleceu!”

Por alguns minutos fiquei sem reação. Na verdade um refluxo de reações se confundiu em mar revolto e bravio. Uma ânsia de partir e uma comoção paralisante. O olhar da imagem me atraiu e tranquilizou. Tomei consciência de que estava na casa de lazer dele e, de algum modo, ela inspirava a sua presença. Tive que retornar e anunciar a todos a terrível notícia. Ali acabou o almoço, o retiro, o passeio, junto com a alegria de todos. Mas, nasceu uma solidariedade condoída de todos, que se prolongou por muitos dias. Então fizemos a viagem ao encontro do corpo de meu pai juntos. Eu, porém, estava solitário e inconsolável em mim mesmo. Nunca me amargou retornar à casa paterna. Acredito que aquela viagem tenha sido a pior que já fizera. Não retornava para ver meu pai, mas tão somente o seu corpo. Ele não mais me falaria, nem eu tornaria a abraçá-lo, beijá-lo, ouvi-lo.

A caminho, acelerava nervoso, todavia não avançava, impedido pela vagareza de um caminhão de carga à minha frente. Já me estressava quando um seminarista percebeu o letreiro da carroceria e me chamou a atenção para que lesse: “Pai a gente nunca esquece!” Pronto! Ali, não tive dúvidas de que estávamos acompanhados na viagem e continuei rememorando os últimos dias que tivemos juntos. Recordações tão pessoais que somente eu poderia manter vivas na memória. Palavras que ele me disse e gestos que eu testemunhei. Impressões minhas e ensinamentos feitos a mim. Sou seu guardião, cada irmão e nossa mãe, cada amigo ou parente, cada conhecido, somente cada um pode guardar aquilo que dele recebeu ao longo dos seus 82 anos de vida.

Quando chegamos em casa, avistei meu irmão mais velho, em pé ao lado do caixão em que o deitaram. Sozinhos na varanda de casa. Fiquei novamente sem ação, contemplando-os. Escutei no meu interior uma voz que dizia: “deixe ir”. Estranhei e me examinei de onde vinha; por que esta frase? Lembrei do evangelho lido naqueles dias, da ressurreição do filho da viúva da cidade de Naim. Em que Jesus se apieda da viúva e ressuscita a sua única companhia. Não dei muita atenção a isto naquele momento. Então me aproximei e vi que meu irmão estava em estado de choque, imóvel, fixo em nosso pai. O evangelho ainda clamava em minha consciência e atinei que nossa mãe, agora viúva, não estava ali. A família não estava reunida e, como se meu pai me mandasse buscá-la, fui ao quarto do casal. Lá estava ela, inconsolável e suspensa, meio fora de si, ao que me olha e diz: “eu ouvi uma voz em meu ouvido que dizia para deixar ele ir. Não me contive, abracei minha mãe e choramos juntos. O meu consolo para ela foi dizer que também ouvi a mesma voz e lhe contei da viagem.

O consolo da hora da morte não é consolo. É outra coisa, mas não conforto ou compensação. É que a sensação de impotência, perda, abandono, saudade sem despedida, provoca uma sensação maior do que qualquer sentimento e pode gerar reações nunca antes experimentadas. A nossa experiência foi esta: deixá-lo ir. Que queria dizer aquela voz? O que significaria para todos consentir na morte dele? Por que era imperativo que sua partida não fosse negada pela nossa vontade e apego. Por que despedir-se dele de boa vontade seria consolo para a família? Não sei bem, mas, se não estivéssemos tranquilos, talvez não percebêssemos tantos sinais de sua presença naqueles dias.

Era o dia dos namorados. Meu pai sempre encomendava flores para minha mãe, mas andara muito debilitado naqueles dias e ainda não o tinha feito. Minha mãe mudaria a posição da imagem de Nossa Senhora da Piedade para a estante da televisão, em frente de onde ficava uma cadeira do papai, que ele costumava sentar para assistir ao noticiário (ela herdou para fazer os seus bordados e orações). Não deu tempo! Ela relutou em seguir a intuição e colocar uma imagem sacra ao lado de uma televisão. Acontece que após o almoço, por volta das treze horas, ele se senta justamente ali para o seu costumeiro jornal. Quando ela vem trazendo o seu cafezinho já o avista ofegante. Só deu tempo de tomá-lo nos braços e ele expirou, numa postura muito semelhante à da imagem de Maria com Jesus em seu colo.

Antes, na manhã daquele mesmo dia, ele tinha dito à esposa de um vizinho, também enfermo, que “ainda hoje” estariam no paraíso. Quando a vizinha soube da morte de meu pai correu apressadamente ao hospital e ainda viu o seu marido desfalecendo. Isto ela só contou à nossa mãe alguns dias depois.


No cortejo fúnebre de meu pai, muitos se somaram naquele gesto solidário e apaixonado. Os devotos do falecido, os amigos dos entes queridos, os conhecidos, os admiradores, e até os curiosos expressaram seus sentimentos condoídos. O enterro de pai foi no dia 13 de junho de 2007. Devoto de Santo Antonio, já eram muitas as coincidências. Aos 13 dias nasceu (13.12.25), às treze horas faleceu e aos treze seria enterrado. Naquela procissão a grande maioria do clero e do povo entoava cânticos que o bispo diocesano executava, intercalado pela Lira Nossa Senhor Imperatriz dos Campos e pela reza do Terço. Meu pai teve missa de corpo presente, presidida pelo bispo e concelebrada pelo clero. Ainda pude proclamar seu nome no ‘memento dos mortos’. Mas, confesso, não me entendam mal, é uma liturgia que não se almeja celebrar.

Mais duas cenas jamais esquecerei: Quando chegávamos ao cemitério um serviço de som se aproximava sem diminuir o volume. Já me constrangia, até que atinei para a música: “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer. Você só me ensinou a te querer e te querendo vou tentando te encontrar. Vou me perdendo, buscando em outros braços seus abraços, perdido no vazio de outros passos, do abismo em que você se retirou e me atirou e me deixou aqui sozinho.” Desde então é impossível ouvir essa música, de Fernando Mendes, sem lembrar de Pai. Naquela hora já me convencia de que aquele enterro era um ato de amor.

A segunda cena se dá quando o caixão é descido os sete palmos. Minha mãe interrompe a primeira pá de areia molhada dos respingos daquela manhã, já quase ao meio dia, e rompe os suspiros dos choros com uma fala de lembrança apaixonada: “Você sempre me ofereceu flores no dia dos namorados, mas ontem você não teve tempo, hoje sou eu quem lhe ofereço.” E lançou suas flores sobre o caixão. Gesto seguido por todos os presentes, num momento em que apenas se ouvia o cair delas sobre ele. Meu pai e suas flores foram cobertos com a areia do cemitério e regados com as últimas chuvas do outono tobiense.

No dia seguinte, após o sepultamento, estávamos em casa naquele clima que não precisa nominar. Vendo a tristeza encarnada em minha mãe procurava alguma forma de lhe devolver a alegria que a despedida de meu pai lhe causou. Eis que me lembro da gaveta que meu pai nos proibia de abrir e xeretar. Propus a ela finalmente descobrirmos o que ele tanto escondia. Ela me olha com aquele semblante de quem se lembrou de algo, no caso de alguém, e concorda. Então lhe trouxe a gaveta e, finalmente, descobrimos o que continha.

Na gaveta de meu pai encontramos alguns pertences seus e de outros parentes dele e dela. Meu pai guardava ainda suas credenciais de militar e canetas velhas; sua caligrafia justifica seu gosto por elas. Mas, o surpreendente, além de algumas fotografias antigas de todos nós, foi uma oração, escrita a próprio punho, que, mais tarde, usamos um fragmento para compor o santinho de sétimo dia. O que realmente quero destacar dessa memória é a frase final da oração: “tendo amado os seus... amou-os até o fim.” (Jo 13, 1b) A conclusão da oração de meu pai era a introdução da Oração Sacerdotal de Jesus, escrita pelo evangelista S. João.

Eu me senti outra pessoa depois que perdi meu pai. Entendi que sua morte me fez mais humano, mais família e mais maduro. Finalmente seus ensinamentos se tornaram mais vivos do que quando ele nos repetia incansavelmente as mesmas coisas. Hoje o amo mais do que antes, ao menos tomei consciência disto. Sinto-me guardião de sua memória. Quis compartilhar esta página da minha vida tão cara, porque sei que tudo isto que experimentei me fez ver a morte de outra maneira. A morte não é a última fase da vida. As pessoas, quando nos deixam com amor, ficam ainda mais presentes, por que sempre foram presentes e vivas dentro de nós.

Desejo uma vida apaixonada e feliz dia dos namorados, pois como disse Diotimia a Platão: “A natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. [..] É em virtude da imortalidade que a todo ser esse zelo e esse amor acompanham”. (In: O Banquete) A vida é um registro no mundo. Tudo fala: o silêncio mais eloquente dos presentes, o sentido mais nobre de seus gestos e as palavras mais memoráveis daqueles que nos deixam.


sexta-feira, 25 de março de 2016

AMOR COM PAIXÃO

Sexta-feira da Paixão – Ano C

Estávamos no último dia de retiro de encerramento do semestre com os seminaristas, em casa de veraneio, ainda almoçando por volta das treze horas, quando alguém de casa me liga, desesperada, sem conseguir dizer ao certo o que queria. Pensava que não conseguia ouvir e entender pelo converseiro à mesa, e me dirigi para o jardim da frente, onde temos uma imagem de Nossa Senhora das Graças, devoção de minha mãe. Pedi então que passasse o celular para ela, que já me atendeu dizendo aos prantos: “seu pai faleceu!”

Por alguns minutos fiquei sem reação. Na verdade um refluxo de reações se confundiu em mar revolto e bravio. Uma ânsia de partir e uma comoção paralisante. O olhar da imagem me atraiu e tranquilizou. Tomei consciência de que estava na casa de lazer dele e, de algum modo, ela inspirava a sua presença. Tive que retornar e anunciar a todos a terrível notícia. Ali acabou o almoço, o retiro, o passeio, junto com a alegria de todos. Mas, nasceu uma solidariedade condoída de todos, que se prolongou por muitos dias. Então fizemos a viagem ao encontro do corpo de meu pai juntos. Eu, porém, estava solitário e inconsolável em mim mesmo. Nunca me amargou retornar à casa paterna. Acredito que aquela viagem tenha sido a pior que já fizera. Não retornava para ver meu pai, mas tão somente o seu corpo. Ele não mais me falaria, nem eu tornaria a abraçá-lo, beijá-lo, ouvi-lo.

A caminho, acelerava nervoso, todavia não avançava, impedido pela vagareza de um caminhão de carga à minha frente. Já me estressava quando um seminarista percebeu o letreiro da carroceria e me chamou a atenção para que lesse: “Pai a gente nunca esquece!” Pronto! Ali, não tive dúvidas de que estávamos acompanhados na viagem e continuei rememorando os últimos dias que tivemos juntos. Recordações tão pessoais que somente eu poderia manter vivas na memória. Palavras que ele me disse e gestos que eu testemunhei. Impressões minhas e ensinamentos feitos a mim. Sou seu guardião, cada irmão e nossa mãe, cada amigo ou parente, cada conhecido, somente cada um pode guardar aquilo que dele recebeu ao longo dos seus 82 anos de vida.

Quando chegamos em casa, avistei meu irmão mais velho, em pé ao lado do caixão em que o deitaram. Sozinhos na varanda de casa. Fiquei novamente sem ação, contemplando-os. Escutei no meu interior uma voz que dizia: “deixe ir”. Estranhei e me examinei de onde vinha; por que esta frase? Lembrei do evangelho lido naqueles dias, da ressurreição do filho da viúva da cidade de Naim. Em que Jesus se apieda da viúva e ressuscita a sua única companhia. Não dei muita atenção a isto naquele momento. Então me aproximei e vi que meu irmão estava em estado de choque, imóvel, fixo em nosso pai. O evangelho ainda clamava em minha consciência e atinei que nossa mãe, agora viúva, não estava ali. A família não estava reunida e, como se meu pai me mandasse buscá-la, fui ao quarto do casal. Lá estava ela, inconsolável e suspensa, meio fora de si, ao que me olha e diz: “eu ouvi uma voz em meu ouvido que dizia para deixar ele ir. Não me contive, abracei minha mãe e choramos juntos. O meu consolo para ela foi dizer que também ouvi a mesma voz e lhe contei da viagem.

O consolo da hora da morte não é consolo. É outra coisa, mas não conforto ou compensação. É que a sensação de impotência, perda, abandono, saudade sem despedida, provoca uma sensação maior do que qualquer sentimento e pode gerar reações nunca antes experimentadas. A nossa experiência foi esta: deixá-lo ir. Que queria dizer aquela voz? O que significaria para todos consentir na morte dele? Por que era imperativo que sua partida não fosse negada pela nossa vontade e apego. Por que despedir-se dele de boa vontade seria consolo para a família? Não sei bem, mas, se não estivéssemos tranquilos, talvez não percebêssemos tantos sinais de sua presença naqueles dias.

Era o dia dos namorados. Meu pai sempre encomendava flores para minha mãe, mas andara muito debilitado naqueles dias e ainda não o tinha feito. Minha mãe mudaria a posição da imagem de Nossa Senhora da Piedade para a estante da televisão, em frente de onde ficava uma cadeira do papai, que ele costumava sentar para assistir ao noticiário (ela herdou para fazer os seus bordados e orações). Não deu tempo! Ela relutou em seguir a intuição e colocar uma imagem sacra ao lado de uma televisão. Acontece que após o almoço, por volta das treze horas, ele se senta justamente ali para o seu costumeiro jornal. Quando ela vem trazendo o seu cafezinho já o avista ofegante. Só deu tempo de tomá-lo nos braços e ele expirou, numa postura muito semelhante à da imagem de Maria com Jesus em seu colo.

Antes, na manhã daquele mesmo dia, ele tinha dito à esposa de um vizinho, também enfermo, que “ainda hoje” estariam no paraíso. Quando a vizinha soube da morte de meu pai correu apressadamente ao hospital e ainda viu o seu marido desfalecendo. Isto ela só contou à nossa mãe alguns dias depois.

O dia de hoje, da Paixão do Senhor, reúne tantos corpos, no mistério da morte, que só Nosso Senhor pode dar sentido. A Paixão de Cristo é o maior gesto de amor, dar a vida pelos seus. Esta é a maior prova de amor que há: dar a vida por alguém. Ainda escuto discussões em torno do que seria maior: o amor ou a paixão? Unânimes confirmam que o amor é maior do que a paixão. Jesus demonstra que o amor se expressa na paixão. Outro dia eu disse que a paixão é a forma mais espontânea do amor. Acrescento hoje que a paixão é o corpo e o amor a sua alma. A paixão é o movimento do amor. Amor sem paixão é insosso, insípido e incolor.

A morte de Jesus é a expressão do amor que se apaixonou. Portanto, do amor com paixão. Há um ano, quando comecei a escrever essas meditações, numa Sexta-feira como a de hoje, eu dizia que as origens grega e latina dessa palavra explicam quase tudo sobre a paixão. O primeiro sentido vem de Patio, do latim, e se refere ao que foi sofrido por resignação e submissão, e Pathe do grego sentir. Deixar-se sentir o sofrimento. Paixão é quando se sente, sem frieza ou desvio, consente em experimentar a dor. A paixão dá sentido ao amor e sua experimentação por alguém manifesta o quanto é essencial a 'com+paixão'. Sentir e querer o bem do outro sem sentir também as suas dores trai o amor e nega a paixão. Todavia, há de se ater que a propriedade do apaixonar-se não é andar por aí sofrendo o masoquismo das incompatibilidades pessoais, mas a partilha das dores mútuas. Sofrer por alguém que aliviamos as suas dores, isto sim é paixão.

No cortejo fúnebre de meu pai, muitos se somaram naquele gesto solidário e apaixonado. Os devotos do falecido, os amigos dos entes queridos, os conhecidos, os admiradores, e até os curiosos expressaram seus sentimentos condoídos. O enterro de pai foi no dia 13 de junho de 2007. Devoto de Santo Antonio, já eram muitas as coincidências. Aos 13 dias nasceu (13.12.25), às treze horas faleceu e aos treze seria enterrado. Naquela procissão a grande maioria do clero e do povo entoava cânticos que o bispo diocesano executava, intercalado pela Lira Nossa Senhor Imperatriz dos Campos e pela reza do Terço. Meu pai teve missa de corpo presente, presidida pelo bispo e concelebrada pelo clero. Ainda pude proclamar seu nome no ‘memento dos mortos’. Mas, confesso, não me entendam mal, é uma liturgia que não se almeja celebrar.

Mais duas cenas jamais esquecerei: Quando chegávamos ao cemitério um serviço de som se aproximava sem diminuir o volume. Já me constrangia, até que atinei para a música: “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer. Você só me ensinou a te querer e te querendo vou tentando te encontrar. Vou me perdendo, buscando em outros braços seus abraços, perdido no vazio de outros passos, do abismo em que você se retirou e me atirou e me deixou aqui sozinho.” Desde então é impossível ouvir essa música, de Fernando Mendes, sem lembrar de Pai. Naquela hora já me convencia de que aquele enterro era um ato de amor.

A segunda cena se dá quando o caixão é descido os sete palmos. Minha mãe interrompe a primeira pá de areia molhada dos respingos daquela manhã, já quase ao meio dia, e rompe os suspiros dos choros com uma fala de lembrança apaixonada: “Você sempre me ofereceu flores no dia dos namorados, mas ontem você não teve tempo, hoje sou eu quem lhe ofereço.” E lançou suas flores sobre o caixão. Gesto seguido por todos os presentes, num momento em que apenas se ouvia o cair delas sobre ele. Meu pai e suas flores foram cobertos com a areia do cemitério e regados com as últimas chuvas do outono tobiense.

Passei o dia de hoje assim. Lembro de tantas exéquias que presidi, de famílias que visitei nessa hora dolorosa e das palavras que, ousadamente, quis dizer para ajudar a manter todos conscientes de que a dor não pode deixar casa gesto, cada sinal, sem sentido. Tudo fala na hora da morte, o silêncio mais eloquente dos presentes, o sentido mais nobre de seus gestos e as palavras mais memoráveis daqueles que nos deixam. “Descanso eterno dai-lhes, Senhor!”

Eu me senti outra pessoa depois que perdi meu pai. Entendi que sua morte me fez mais humano, mais família e mais maduro. Finalmente seus ensinamentos se tornaram mais vivos do que quando ele nos repetia incansavelmente as mesmas coisas. Hoje o amo mais do que antes, ao menos tomei consciência disto. Sinto-me guardião de sua memória. Quis compartilhar com você, caro leitor, esta página da minha vida tão cara, porque sei que tudo isto que experimentei me fez ver a morte de outra maneira e me fez aprofundar ainda mais a Paixão de Cristo e a minha. A morte não é a última fase da vida. As pessoas, quando nos deixam com amor, ficam ainda mais presentes, por que sempre foram presentes e vivas dentro de nós.

Desejo uma vida apaixonada e no fim dela uma morte santa. Ame e reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
25.03.2016

Pe. Adeilton Santana Nogueira

quinta-feira, 24 de março de 2016

AMOU-OS ATÉ O FIM

Quinta-feira Santa – Ano C

Quando o meu pai faleceu, aos 12 de junho de 2007, porém no dia seguinte, após o sepultamento, estávamos em casa naquele clima que não precisa nominar. Vendo a tristeza encarnada em minha mãe procurava alguma forma de lhe devolver a alegria que a despedida de meu pai lhe causou. Eis que me lembro da gaveta que meu pai nos proibia de abrir e xeretar. Propus a ela finalmente descobrirmos o que ele tanto escondia. Ela me olha com aquele semblante de quem se lembrou de algo, no caso de alguém, e concorda. Então lhe trouxe a gaveta e, finalmente, descobrimos o que continha.

Na gaveta de meu pai encontramos alguns pertences seus e de outros parentes dele e dela. Meu pai guardava ainda suas credenciais de militar e canetas velhas; sua caligrafia justifica seu gosto por elas. Mas, o surpreendente, além de algumas fotografias antigas de todos nós, foi uma oração, escrita a próprio punho, que, mais tarde, usamos um fragmento para compor o santinho de sétimo dia. O que realmente quero destacar dessa memória é a frase final da oração: “tendo amado os seus... amou-os até o fim.” (Jo 13, 1b) A conclusão da oração de meu pai era a introdução da Oração Sacerdotal de Jesus, escrita pelo evangelista S. João, lida na missa de hoje, de Lava-pés ou da Ceia do Senhor, como queiram.

Passei esse dia lembrando desses homens, mártires de amor, que significaram a minha vida, meu pai e Jesus, nosso Senhor. Acho que não fiz mal em lembrar deles juntos, já que são as minhas maiores referências nessa vida. Hoje, nós sacerdotes, renovamos os nossos votos perante o bispo, pai espiritual da comunidade de fé. Acho também que não peco se a imagem de meu genitor e os compromissos que me exemplou com a sua vida são ainda tão fortes em minha consciência e coração que não consigo substituí-lo por outra figura paterna. Ainda mais, afastado já há mais de dois anos, meus votos, meu ministério e o sacerdócio estão mais nas mãos de Deus do que quando pareciam estar nas minhas.

A cada dia, distante do exercício do ministério sacerdotal, todavia incardinado à diocese, percebo que o sacerdócio de Cristo, no qual participam os ordenados, e o próprio exercício desse ministério, é maior do que foi ensinado nos seminários ou se conhece durante os anos na ativa. O alcance de nossas palavras e ações, em absoluto, não retornam para onde saíram. Isto muitíssimo me alegra! A eficiência do ministério sacerdotal, o exercício do sacerdócio, enquanto sacramento vivo que é o sacerdote, não é apenas ex opere operato (pelo fato de ter sido validamente celebrado, sem mérito de quem recebe ou oficia o sacramento) ou ex opere operantis (a depender da santidade do ministro), arriscaria em dizer que, independente da ‘polêmica’ credulidade do ministro e mesmo fora dos rituais, há uma eficiência que é sumamente “ex opere” (além da ação). As boas ações de um sacerdote sempre exalarão o agradável odor de Cristo (2 Cor 2, 15), ainda que ele não seja um ‘bom’ ministro ou não celebre os sacramentos. Penso que a graça e validade dos sacramente continue após eles, estenda-se através e além deles.

Se é Cristo quem age no sacerdote, não se pode achar que seja apenas em momentos isolados, uma vez que ele não foi ‘meia boca’ ordenado, logo suas boas ações sempre carregarão a marca indelével de sua ordenação – Jesus Cristo, que o assemelha à sua natureza sacerdotal, intrínseca pela força do sacramento que recebeu. Suas boas ações não lhe pertencem. Uma vez realizadas, as consequência, sempre benéficas, pertencem à ação última dAquele que “passou no mundo fazendo o bem” (At 10, 38) – Jesus Cristo, e cremos operar por um ministro ordenado, em especial, por um sacerdote, legítima e validamente ordenado.

A graça sacerdotal é Cristo. E Ele é Deus. O que um Sacerdote faz de bom terá sempre a força de Deus. A sua palavra e ação, em razão de sua ordenação, tem a força e o alcance que a Igreja espera. Ainda que ele deixe o ministério ou a Igreja lhe tire, ainda que os fieis não o aceitem, por suas aparências humanas ou seus inimigos consigam manchar sua reputação, graças a Deus, nada do que ele operou, na força da Ordem, será prejudicado em seu fim último. Ainda que ele seja crucificado, difamado, chagado, o seu suor e sangue continuarão redimindo, pois os seus feitos continuarão produzindo frutos nos corações onde semeou a Palavra da verdade. Este é o meu consolo de hoje. As ações de Deus perduram para sempre. Meu consolo é que Deus agiu e, ainda mais, continua agindo por mim, pelas obras do passado e pelas ações do presente. Age também em mim, pois jamais tirou a sua bênção da minha vida, ainda que alguns, mesmo de igreja, desviem o olhar e não me abençoem mais.

O sacerdócio não é um ofício qualquer, como esses da crise econômica, que se demite pela inutilidade, pelo contingente ou pela contingência dos operários. Quando vejo o meu colegiado, clama em meu coração o grande dom que Deus nos deu. Todos os ritos celebrativos exaltam o sacerdote. É uma dignidade deveras alta. Jamais me considerei digno de tal chamado. Inclusive, ingressei para ser menos indigno atendendo-Lhe ao chamado. Minha mãe achava que a Igreja era o lugar mais seguro e estável para a carreira de um filho. Encontrava-se segura comigo no clero, como se eu estivesse protegido de quaisquer maldades desse mundo. Meu Deus, existe esse lugar, em que o mal não se encontre?

Todos os ritos de hoje apontam para o exercício do ministério. São celebrações funcionais. Elas querem dizer algo muito claro e eficiente. Existe uma finalidade para cada ato, para cada gesto e símbolo. Tudo é para, em razão ou função disso ou daquilo; tudo aponta, indica. Estamos celebrando, mas ainda não é isto. O que de fato é aquilo que estamos celebrando ainda precisa ser buscado outra vez, em outro lugar, em outro tempo. Há sempre a necessidade renovada de se repetir isto que cremos seja eterno e verdadeiro, mas que não se concretiza definitivamente agora, hoje, desta vez. Parece que algo da mecanização moderna na religião, algo de industrial, produtivo, acumulativo e rentável.

Será que isto tem a ver com o fato de que os atos de Jesus continuam sua eficiência após terem ocorrido, mesmo que por sacerdotes? Por que os mesmos atos precisam ser feitos de novo, mesmo em pessoas que já os receberam, se são eficientes definitivamente, em razão de quem os operou: Cristo? A eficiência da Graça não pode estar no paciente, em quem a recebe, senão no agente, em quem as ‘ex’ opera (age para fora). Não fosse assim, precisaríamos de quem as operasse? O que sei é que entre ministério sacerdotal e eficiência da graça há um fio condutor nem sempre contemplado como precisão. A eficiência das ações ministeriais está garantida nAquele que opera de fato através delas: Deus. Esse mecanismo industrial, como um sistema produtivo, sutilmente impregnado na religião parece não estar ajudando na práxis pastoral. Os ministros não são operários que se descartam como peças fora da nova  engrenagem onde sua utilidade não serve mais.

Vejo nos tantos símbolos e mediações visuais e gestuais os apetrechos da gaveta de meu pai. Tantas lembranças que ele guardava e que tanto nos emocionaram em descobrir. Mas, o mais importante naquela vasculhada foi descobrir a sua oração que nos soou como uma carta póstuma, nos moldes de um testamento e de suas últimas palavras que não teve a chance de dizê-las. A lembrança daquela cena me fez entender o sacerdócio assim, como as últimas palavras de Jesus e de meu pai: o sacerdócio é “amar os seus até fim”. Muitas palavras ficam para sempre na memória de alguém, mas as últimas nos preocupamos em mantê-las ecoando. Assim o sacerdócio é maior do que o sacerdote e a sua eficácia é maior do que o seu exercício. Assim se garante que jamais alguém nesse mundo possa, de fato e em verdade, anular a instituição do sacerdócio de Jesus e do amor como sacramento.

‘Hoje’ Jesus é um sacerdote condenado, um algoz, um vilão, um atroz. Embora sempre estivesse com os Seus nas praças e sinagogas, no Templo e nas casas. ‘Hoje’ é o bode expiatório dos irmãos que não têm coragem de olhar para si mesmos e enxergar o quanto manipularam a religião que Ele mesmo fazia parte. Pintaram um rosto de Jesus que não era a Sua verdadeira face. Corremos este risco quando não somos fieis à Sua verdadeira personalidade.  Por isso, sempre achei que retirar o Santíssimo do altar e colocar no corredor lateral da igreja não resolveria muita coisa. Sempre achei belíssimas as cerimônias bem ensaiadas de modo que os fieis não percebessem erros, como se o padre não soubesse o que estava fazendo. Sempre achei que valeria repetir o ato no próximo ano, uma vez que alguns estariam participando pela primeira vez, sobretudo os mais novos. Mas sempre percebi que até os mais velhos ainda não sabiam a sequência dos atos, nem o seu sentido.

Ainda hoje me deparo com a constante perda de sentido desses dias sagrados e a crescente admiração e promoção do espetaculoso das procissões e imagens sacras restauradas para a exposição pública. Há muita piedade sim, acredito! Mas a oscilação da frequência de fieis nas celebrações comuns me preocupa também. O que há com a fé dos piedosos, que se alimentam de procissões, que não os saciam nas doses cotidianas das celebrações comuns? Que sabor é esse das procissões que os bancos das igrejas não adquiriam? Há mais pessoas nas filas penitenciais da Semana Santa e do cortejo do padroeiro do que na missa semanal.

A eficácia e perenidade da ação de Cristo, que continua agindo no crente, não deveria lhe furtar a vida saudável e graciosa de, também ele, ser perene na sua pertença e permanência com o seu Deus. Por isso que os símbolos e metáforas sempre serão insuficientes para falar do próprio Verbo encarnado. Dizer que Jesus cura pode aludir ao remédio que se administra apenas no período da enfermidade. E, talvez, justifique o fiel que somente O busca nas fragilidades de sua vida. Penso eu, que quando apresentarmos Jesus como a pessoa que de fato é, sem tantas comparações e elucubrações eloquentes, sem historinhas e metáforas, sem falácias ou lógicas metódicas, sem máscaras e comparações, sem precisar de outro texto para facilitar a leitura e atualização da Escritura, sem moldá-Lo às próprias conveniências, sem preferir ou omitir esta ou aquela citação ou quando a sua vida for a principal mediação de Sua Pessoa e vive versa, aí estaremos falando de Alguém real e humano, mais próximo e palpável, exemplar e repetível, alguém que toca as nossas memórias e nos compromete em seguir, sem obrigações ou preocupações aparentes, sem coação, mas por amor a Ele. Não é possível que, conhecendo o próprio Amor, não O amemos. Alguém não O apresentou ainda!

Desejo uma vida de amor, com Jesus, e tão intensamente que o seu amor, leitor(a), alcance os seus. Reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
24.03.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira



domingo, 13 de março de 2016

LOUSA DE AREIA

Jo 8, 1 – 11
5º Domingo da Quaresma – Ano C

Que coisa, de fato, é o amor? O que mesmo é amar? Quanto já se disse e quanto já se viveu sem, ao certo, definir o maior sentido da existência? Viver e amar quase se confundem, sendo que o amor daria sentido à vida. Mas como encontrá-lo, defini-lo, experimentá-lo? Se ele existe onde está? Se ele é real quem o pode testemunhar? Se ele é tão fundamental, como vive quem não o possui? Pode a religião definir o amor?

Todas as histórias de Jesus estão repletas desse sentimento que Ele exala. Em Jesus, o amor de Deus é revelado. Ele fala de amor, ensina a amar, cobra amor, ama seus amigos ao ponto de chorar por eles e ama também os seus inimigos a ponto de perdoá-los mesmo pelo próprio assassinato. Se a religião pode dizer algo do amor é da mesma forma que todo o resto da humanidade, a partir de uma experiência concreta em que nos sintamos amados. Do contrário seria quimera e tirania, sonho e arrogância.

1 Jesus foi para o monte das Oliveiras.

Ah, o monte das Oliveiras! Mesmo para quem não foi ainda, imagine uma colina alta o suficiente e tão próxima de Jerusalém que dá para avistar toda a cidade. Jesus estava lá para a Páscoa (Cf. Jo 7, 10) e já era próximo da meia noite. Ele costumava ir lá para rezar. E na sua subida, no derradeiro ano, que Ele vai chorar por toda a cidade que mata seus profetas e não reconhece quem a visita. Quanta coisa não deve ter passado na cabeça e coração de Jesus nessa floresta onde se escondia na intimidade com o pai. De certo que escutava algum barulho de festa e vislumbrava luzes de candeeiro e tochas iluminando a cidade em torno do Templo, bem como pressentia suas contradições, o comércio e a periferia.

2 De madrugada, voltou de novo ao Templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los.

Ao que parece, nunca foi honesto pregar sem rezar antes, ao menos não foi o costume de Jesus, como também era uma prática sua não ter horário de descanso ou seletiva de lugar. Nós modernizamos demais a religião e a sintonizamos com o ritmo das fábricas e dos operários. Jesus trabalha na madrugada, quando se reúnem os que precisam de suas palavras, eis sua estratégia pastoral. É no frio da noite e na penumbra da luz que o mal sombreia a moral e a própria fé. Mas o povo de aglomerava por causa das contendas entre Ele e os fariseus e mestres da Lei no capítulo anterior, o que não deixariam barato!

3 entretanto, os mestres da Lei e os fariseus trouxeram uma mulher surpreendida em adultério. Colocando-a no meio deles, 4 disseram a Jesus: ‘Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.

Como o irmão mais velho do filho pródigo estes mestres da Lei são caçadores de moralidade. Conhecem com intimidade os horários e lugares de tais delitos. Sua ciência os beira no mesmo abismo em que pretendem atirar a ‘adúltera’. Mas como poderia ser uma prostituta acusada de adultério se quem adultera é o homem casado que se deitou com ela. A não ser que ela também fosse casada, o que não parece ser o caso. A moral mosaica culpava ‘profissional do sexo’ mas, nesta cena, omite o cúmplice. Faz da mulher uma ré do tribunal do apedrejamento, onde fazem de Jesus juiz, dos mestres da Lei advogados apenas de acusação e do povo espectadores ao sopro de suas maquinações e manipulações retóricas.

5 Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?’ 6 Perguntavam isso para experimentar Jesus e para terem motivo de o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão.

A questão é esta: testar Jesus e, de uma só tacada, matar dois coelhos: Jesus e a mulher, restaurar a religião de Israel e moral, ambos ameaçam essas realidades com suas práticas. Quanta hipocrisia nesse tribunal de área! Onde a moral é escrita na serventia de quem não se dá ao respeito, para encobrir as próprias práticas lascivas, também Jesus escreve no chão, lousa do que não se deveria dizer: os nossos pecados; terra onde se pisa e onde já pisamos – caminho de todos e passos de qualquer um. Para isto Ele se rebaixou e de novo se inclina, para tocar os nossos pecados e apagá-los, não para lembrá-los. Coisa que nem as igrejas, nem nós entendemos ainda.

7 Como persistissem em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: ‘Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.’

Assim o juiz se manifesta e sentencia universalmente a todos. Essa expressão nivela a todos, mulher pecadora e demais presentes. Ele era o único que poderia iniciar aquele apedrejamento. Que fez, então? Continua a afastar as pedras para dar-Lhe espaço e continuar a escrever na lousa de areia, onde as palavras não perduram como os pecados também não são eternos em ninguém, a não ser pela vontade de condenar.

8 E tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão.

Assim como Jesus cai três vezes na Via Sacra, três vezes se inclina. Depois de Sua descida do céu ao barro humano, aquelas duas outras são o peso dos pecados que o deixam menor do que os pecadores. Ali, ao chão, na lousa de areia, ele ensina a lição do perdão aos que pecam. Ensina o caminho à religião que quer ser caminho de salvação. Ensina que o amor está acima do sexo, que o perdão está acima da Lei e que a fé pode ser a razão da moral, se amor, perdão e fé se unirem no coração dos que pecam e dos que julgam.

9 E eles, ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e Jesus ficou sozinho, com a mulher que estava lá, no meio do povo.

Ela foi o centro das atenções dos homens e do povo nesta perícope. O apedrejamento dessa mulher talvez Lhe tenha lembrado a história de Sua mãe Maria que também foi ameaçada de tal delito por aparecer grávida. Assim não foi sem motivos que ele usasse o precedente dos pecadores, pois tinha em mente uma vitima inocente – a mãe – e uma pecadora – a prostituta. Quantas cenas dessas Ele deve ter presenciado! Em ambos os casos as aparências as condenariam, mas não perante Aquele que conhece os corações, entende as intenções dos que condenam, reconhece a leviandade das proposições falaciosas, sua malícia e arquitetura. Leviana era, pois, a palavra e o testemunho daqueles inquisidores, traídos e denunciados por sua mente que tentava enganar a memória dos próprios delitos.

10 Então Jesus se levantou e disse: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?

Chega a dar um alívio esta pergunta! Queira Deus que sumam os que condenam, que se retirem na vergonha de seus próprios pecados, que também sintam o peso na consciência daquele fardo que querem imputar em bodes expiatórios, apontando um dedo para os outros enquanto os demais se voltam para si mesmos. ‘Ninguém’ a condena porque Ele mesmo não a condenou. Confesso que isto me incomoda, o fato de a misericórdia de Jesus se expressar tão clara, sem considerar as falhas, e que seja tão diferente do modo como os cristãos e suas igrejas julgam os faltosos.

11 Ela respondeu: ‘Ninguém, Senhor.’ Então Jesus lhe disse:’Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais.’

É tácito que Jesus preferiu a lousa de areia à tribuna judicial. Seu ensinamento está repleto de misericórdia, pois, com amor, deixar na mão da pecadora a atitude de mudança. Coagir seria forçar uma moral de atitudes superficial e aparente que não valoriza o fiel, apenas mascara uma piedade fluida como as gotas das velas que queimas em seus altares ou suas roupas que se troca como trocam de denominações.

Tantas frases de Jesus marcaram a nossa formação! Essa “Eu também não te condeno”, embora não deva ser lida sem o seu fim “e de agora em diante não peques mais”, é a frase que, acredito eu, todos gostaríamos de ouvir, sobretudo quando temos quem nos condene. Todavia, caro leitor, basta saber como Jesus agiria se estivesse no lugar de nossos algozes; assim sabemos quanto distam ou se aproximam dEle, os que dizem segui-Lo.

Desejo uma vida de perdão incondicional, pois Jesus perdoa sempre e a todos. Tenha uma semana abençoada e reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
13.03.2016

Pe. Adeilton Santana Nogueira

sábado, 5 de março de 2016

AMOR SEM FIM

Lc 15, 1 – 3. 11 – 32
4º Domingo da Quaresma – Ano C

Se no evangelho do domingo passado estávamos no topo da montanha, agora começa a escalada de descida. Após a trajetória esmerada de conversão podemos retornar à vida real, descer das nuvens de uma espiritualidade desencarnada e voltar para o entorno dos irmãos.

1 Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. 2 Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. ‘Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles.’

Esta é a questão de fundo que inspira Jesus na parábola que segue. Nela, acostumou-se privilegiar o protagonismo do filho mais novo. Porém, proponho olharmos com mais atenção para o papel do filho mais velho. Ele parece repetir esta última frase de Jesus.

3 Então Jesus contou-lhes esta parábola: 11 ‘Um homem tinha dois filhos. 12 O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o Pai dividiu os bens entre eles. 13 Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada.

Este é um sonho de juventude que se arrasta por anos na história da humanidade. Quem acha que a juventude moderna é autora dessa postura, engana-se. Podemos ler diversas histórias familiares nessa trama, talvez até mesmo a sua, meu leitor, mas prefiro destacar essa vida ‘desenfreada’. A causa do fracasso desse jovem já se descortina. Ele não soube frear-se e atropelou a própria vida, como veremos.

 14 Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar necessidade. 15 Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para seu campo cuidar dos porcos. 16 O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam. 17 Então caiu em si e disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. 18 Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei conta Deus e contra ti, 19 já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados’.

Em algum momento a relação entre força e velocidade tende a se alterar, uma vez que não estamos, neste mundo, a esmo no vácuo. Ainda que não seja aparentemente freada a intensidade e relação entre ambas vai diminuindo, como se as cansasse, e todo movimento há de parar, assim é a física das relações humanas. Uma hora tudo chega ao seu fim e a trajetória percorrida se torna visível pela crise ou pelas as consequências dos atos. Há duas maneiras pelas quais se pode julgar uma ação: as intenções e as suas consequências. Este filho inconsequente ainda pode cair em si e, apesar de não ser tão coerente na intenção de retornar, pois volta por necessidade e não pelo amor a seu pai, mas pelo amor que conhece dele, mesmo assim está disposto a reconhecer o erro. Finalmente a ‘fruidez’ se deixa vencer pela sua fluidez.

20 Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos. 21 O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho”. 22 Mas o pai disse aos empregados: ‘Trazei a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. 23 Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. 24 Porque este meu filho estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa.

É incrível e sem limites a capacidade misericordiosa do pai, figura de Deus e da religião, como deve ser. Não é a desculpa do filho e sim a generosidade do laço familiar que faz o pai agir ainda mais extraordinariamente, dando-lhe mais riqueza e dignidade, além do que tinha antes. Túnica de realeza, anel de herança retomada e sandálias de riqueza e conforto. Até o novilho da páscoa foi antecipado. Quando Jesus fala de festa no Céu por um pecador que se converte não poupa a expressão: “Há mais festa no céu” por isso, do que por noventa e nove justos (Cf. Lc 15, 7). Pareceria injustiça de Deus se fosse uma comparação de méritos. Vejamos o que segue!

25 O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. 26 Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. 27 O criado respondeu: ‘É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde’. 28 Mas ele ficou com raiva e não queria entrar.

No mínimo seria estranho uma atitude assim. Este irmão deve ter repudiado deveras a atitude do mais novo e, talvez, solidarizado com o pai; deve, ainda, ter redobrado o seu trabalho para suprir a ausência do irmão, mas também deve ter alimentado um tipo de raiva que, dessa vez, veio à tona e o transformou no filho rebelde que foi o outro, excluído-se, desta vez, do seio familiar. O outro fez o que esse faz agora. Parece que aquela festa correu o risco de perder a alegria. Havia ali um pecador relutante em converter-se.

28 O pai, saindo, insistia com ele. 29 Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. 30 Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado’.

Agora sim, ele desabafa e revela também as suas intenções. Ele se via como empregado de seu pai, acumulando anos sobre as costas e obedecendo a leis, mas também cheio de direitos e cobranças. Não se considerava membro, irmão, filho. Citar as prostitutas só o entrega ainda mais. É impressionante como nos revelamos nas acusações que fazemos! Esta deveria ser a sua confissão, como no encontro do pai com o filho mais novo, mas nem tudo que dizemos, ainda que sinceramente, pode ser considerado como verdade, eis esta cena. O filho diz o que sente, porém nada condiz com a realidade aos olhos de seu pai. Como a maldade dos olhos pode enganar um coração!

31 Então o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. 32 Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver, estava perdido, e foi encontrado”.

Note como a resposta do pai destoa completamente do sentido que o filho lhe deu. Primeiro o pai o lembra de que é filho e que ele tinha a liberdade de dono. Em segundo o pai lembra o que está acontecendo, o regresso do filho dado como morto, quando antecipou a morte do pai no pedido de herança. Nada disso importa para o pai, como não deveria importar para o irmão. Note ainda que as alegações do irmão são egoístas, dizem respeito às coisas que ele queria ter feito, e que não defendem o pai, a pessoa mais atingida dessa estória.

O relato termina sem conclusão. Não sabemos o desfecho desse diálogo. Reza a tradição que o leitor deva terminar a estória, aplicando-a à própria vida. Com qual dos personagens acima citados você se identificaria mais, se já passou por cenas semelhantes em sua vida? Ao que parece, Jesus está ensinando aos fariseus, grupo que se considerava a elite da religião, os melhores, os guardiões da tradição. Será que o filho mais velho vai entrar na festa?

Fato é que, se o pai é mesmo figura de Deus e da religião, essa atitude cega de acolhida incondicional, a contra gosto do irmão, pautada na generosidade do vínculo, capaz de virar uma páscoa particular é mesmo algo estranho até para as igrejas cristãs de hoje. Quando não, um ato ou outro talvez se justifique alguma esperança, mas na ordem do dia a seletiva e a exclusão são mesmo a política mais usual. Não raro ‘aqui se paga’, ainda que não tenha gastado com prostitutas; basta que algum irmão alegue isto e a festa se acaba. Há situações em que há mais festa por ‘pecadores’ que se afastam e ‘livram’ os templos de problemas do que na prática da tão pregada misericórdia cristã. O que parece, nós ainda não sabemos nos corrigir, muito menos corrigir o irmão. Até porque, como disse Jesus: “Aquele que entre vós está sem pecados, atire a primeira pedra!”

Arrisco em dizer que se não recuperarmos a figura do pai dessa parábola não haverá festa nenhuma. Os filho fugitivos não voltarão e os que se dizem fieis jamais o foram. Aquela família será tida como amaldiçoada, vendo seus filhos se digladiando. Aquele pai não terá a quem deixar a sua herança, pois esbanjaram sua riqueza. Para que tanto amor derramado e tanta festa promovida se os filhos, a quem se destinam tantas riquezas, não se unem, nem se sentem em casa e ainda esbanjam o que têm? Se não recuperarmos a figura do pai as religiões não se parecerão com o Deus a quem servem. A casa não será a da festa do cordeiro cevado, pois não haverá quem o saboreie. Grande será a decepção daquele pai se aquele filho mais velho não entrar. Então o pai perderá outro filho de novo. Quem sempre esteve com ele jamais esteve de fato.

Esta é uma narração sem final, nem feliz ou triste, ainda. Quem sabe o filho mais novo também saiu para ajudar o pai a quebrar o orgulho e a inveja do irmão. Quem sabe a religião não tenha mesmo as respostas sozinha, se os fieis não decidirem participar da família a que integram. Quem sabe seja este o risco da religião, o de não saber reconciliar os irmãos, nem entre si, nem consigo mesma, a exemplo daquele pai, naquela estória inacabada. O alerta já foi dado por Jesus, num enredo de extrema compaixão, atitude incondicional que revela qual a postura que reverte o cenário. Entender isto é a chave que abre o coração do outro filho e recobra a integridade daquela família. Conversão é uma atitude pessoal e, portanto, dos filhos; compaixão é uma atitude absoluta e, portanto, da figura do pai, de Deus e da religião. Assim deve ser.

Desejo uma vida de compaixão incondicional. Ainda que alguém não a mereça! Já pensou se Deus só nos desse o que merecemos? Tenha uma semana abençoada e reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
06.03.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

domingo, 28 de fevereiro de 2016

FIGUEIRAS INÚTEIS

Lc 13, 1 – 9
3º Domingo da Quaresma – Ano C

Em uma sequência de cinco semanas estamos no meio do caminho. A terceira semana da Quaresma completará a metade do percurso da viagem de Jesus a Jerusalém, nos capítulos de nove a dezenove do evangelho de S. Lucas. Se tomarmos esses textos como a catequese de preparação para Si e para os discípulos, veremos que cada aula é uma etapa da vida cristã, que precisa ser bem vivida e assumida. Esta de hoje ascende ainda mais as duas primeiras.

Depois de vencer as tentações e a escalada da montanha da espiritualidade, ninguém pense que a primeira seja a segunda. Ser tentado e não cair não é, necessariamente, uma escalada espiritual, ainda que o diabo tenha levado a lugares altos. As tentações podem ser vencidas por outros valores que não sejam espirituais, como os morais, profissionais, índole pessoal ou mesmo a diversidade de gostos e saberes. Mas, a lição de hoje, se vista como uma etapa que exige as anteriores, ganha um sentido ainda maior que não pecar e do que rezar, a saber, não se considerar, por isso, melhor do que os outros.

1 Vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam. 2 Jesus lhes respondeu: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? 3 Eu vos digo que não. Mas, se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo.”

A questão não é não pecar ou pertencer a essa ou aquela região, família ou tradição religiosa, mas converter-se. A conversão é o grande tema da religiosidade que valida qualquer testemunho pessoal e espiritualidade. Não somos abençoados porque nada de mal nos ocorre. Se fosse assim as maldades e desgraças que assolaram a vida de Jesus atestariam que ele era grande pecador. Ele já começa a preparar os seus seguidores a abandonarem essa visão preconceituosa da religião dos prazeres, onde se busca satisfações e bem estar, que faz do religioso uma pessoa blindada de desgraças.

Chama-se teologia da retribuição, essa mentalidade difundida desde o primeiro Testamento, mas comum mesmo entre os descrentes, a ideia de que tudo tem que dar certo e estar tranquilo, sem problemas, para que nos sintamos em paz e testifique que agradamos a Deus. Essa teoria da passividade, em ser digno de receber méritos, não condiz com a prática dAquele que carregou sobre si as nossas dores e fez-se pecado para aliviar a culpa de Seus semelhantes. Se graça é não aparentar maldição, que foi fazer Jesus no alto da cruz?

4 “E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? 5 Eu vos digo que não. Mas, se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”.

A injustiça política de Israel tocou a religião de Jesus. Talvez nem fosse o ensinamento oficial dos anciãos. No entanto, era uma mentalidade corrente cujas autoridades religiosas não se preocuparam em reorientar. Há diversas ideias soltas na fé que não condizem com a própria doutrina. Maus ensinamentos dados a esmo, por quem, talvez, nunca leu o seu livro sagrado inteiro e, portanto, também não entendem direito, e repassam como verdade. Assim como a fofoca e a mentira, a falsa doutrina também se avoluma entre os fieis. Tais enganos se cristalizam na pastoral, na catequese, na família e na sociedade como uma erva daninha ramificada. Carecemos de semeadores e pescadores tanto quanto de guias. Não raro os guias fazem vista grossa e todos caem no mesmo abismo.

6 E Jesus contou esta parábola: “Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não encontrou. 7 Então disse ao vinhateiro: ‘Já faz três anos que venho procurando figos e não encontro. Corta-a! porque está ela inutilizando a terra?

Esta é uma das figuras comparativas à nação. O povo conhecia esta alegoria de Israel também como árvore frutífera. Todavia, esta figueira não dá figos desde que foi plantada. A reação do dono poderia parecer radical ao leitor que vê de fora. Apesar disso, acredito que também o leitor, grosso modo, cobre o que espera dos outros, desista do que lhe atrapalha e troque de opções por resultados melhores. Afinal, quem insistiria no que não presta?

8 Ele, porém, respondeu: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. 9 Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás’ ”.

Eis o papel das igrejas e das religiões enquanto instituição: insistir na conversão da mentalidade; cavar, adubar e esperar. Dar fruto é uma decisão ou natureza da figueira. O papel do vinhateiro é dar as condições para que a planta germine e frutifique, ainda que seja uma figueira inútil. Sem essa cooperação do dono do terreno, dos vinhateiros e arrendatários não seria possível a nenhuma planta seguir suas determinações ou o prazo da colheita, senão o próprio da sua natureza selvagem, oportuno do tempo e das estações. Se quisermos orientar alguém é necessário que pastores arrebanhem, pescadores se atirem ao mar e semeadores rasguem a terra; do contrário não culpem o rebanho, nem os peixes, nem as sementes.

Há de se saber também que é próprio da figueira dar figos; eis a contrariedade do vinhateiro, pois era uma vinha com figueira no meio. Aquele fruteiro estava ali em favor da esperança de que agradasse o dono. Nem mesmo na natureza as coisas são despropositadas. Por isso este senhor vai acreditar de novo; para que não lhe recaia a decisão na pressa dos resultados, no engano das aparências, na fome do momento, nem no orgulho do poder. Assim poderia perder a melhor ou a única figueira de seu terreno, ou ainda, como diria Henfil, ignorar a intenção da semente. Afinal, quem é que sabe ao certo quanto tempo se deva esperar por frutos?

Ainda me pergunto de quem é mesmo a responsabilidade de julgar e sentenciar ao corte radical figueiras que não dão o fruto esperado; e se não é, justamente o contrário, o sentido da religião, religar as coisas e as pessoas, conectá-las, unir as pontas rompidas, como na pintura A Criação de Adão, de Michelangelo, na Capela Sistina. Apesar de não se saber ao certo se ali a mão de Deus e a de Adão se aproximam ou se afastam.

Desejo a você uma vida misericordiosa, na qual se dê a chance às ‘figueiras inúteis’ de darem fruto no seu tempo. Boa semana e reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
28.02.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

sábado, 27 de fevereiro de 2016

UMA GUINADA, UP, NA FÉ

Lc 9, 28b – 36
2º Domingo da Quaresma Ano C

Depois do deserto a montanha, depois das tentações a escalada, depois do sol escaldante a falta de ar e o vento gélido, depois da provação a oração. Ledo engano para quem acha que se reza primeiro e depois enfrenta a tribulação, pois esta se enfrenta ‘em’ oração. Jesus nos ensina que a oração não é uma etapa na vida espiritual, mas a própria vida espiritual, o seu cotidiano.

28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar.

A prática da vida de oração, ou melhor, deveria dizer a vida de oração, uma vez que dizer-se ‘de oração’, sem a prática de orar ou rezar, perderia o sentido. Isto é a vida de qualquer pessoa espiritual: conversar com Deus. Pois se algumas vezes nos pegamos conversando sozinhos, com nossos botões, como poderíamos viver sem elevar ainda mais alto o nosso pensamento e até mesmo silenciar para ouvi-los? Subir ‘acompanhado’ já indica que subir sozinho era uma tarefa que o próprio Jesus não preferia. A montanha, por sua vez, é um sinal antigo de encontro com aquele que é superior a tudo, o totalmente outro. Como disse Dante Alighiere, no canto do Purgatório, o qual compara com uma montanha, na sua escalada, o cansaço é o que menos se sente quanto mais se sobe; assim poderíamos definir também a vida espiritual.

29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.

É sempre curiosa a sensação de felicidade e segurança que transparece no rosto de quem faz uma experiência de satisfação. Tal pessoa não se nega nas aparências de que está bem, pois o seu coração e consciência, de fato, estão bem. Deixo ao leitor, em sua mais íntima meditação, a possibilidade de nos dizer o que seria esta roupagem alva e resplandecente da qual Jesus se revestiu e muitos de nós não conseguem esconder, quando transbordam de felicidade.

30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias.

São os homens das montanhas. Aqueles que as frequentavam com assiduidade. Não é de se admirar que haja pessoas de oração onde se costumam rezar. A admiração seria o contrário, se não houvesse pessoas de oração nos lugares onde se vai rezar. Todavia, não se admire se eu disser que aquele monte, Tabor segundo a tradição, já era frequentado por não cristãos. Mesmo em Israel, não há tantas montanhas, nem tão altas, como se vê igrejas em cada esquina de nossas cidades. Lugares assim não eram exclusivos. Contava o guia turístico do local que, segundo uma antiga tradição, uma deusa pagã era cultuada lá em cima, além do que, outros judeus também se reuniam para cultos não ortodoxos. Assim, podemos entender que Jesus se mistura aos que buscam Deus além de uma religião que se perdeu na razão de suas leis.

31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém.

A conversa é essa: sofrimento e morte. Mas quando diz ‘sobre a morte’ dá a entender também sobre que tipo de morte, e aí podemos pensar em todas as situações que envolveram a morte de Jesus, sobretudo aquelas ligadas à história de cada um desses que vieram para partilhar esse assunto. Uma conversa que nenhum de nós, vivos, gosta de ter; logo alguém diria: “Vire essa boca para lá!” Também acho de extrema dureza que se tenha de falar de assuntos que nos matam e do quanto nos querem mortos, como aquele sacerdote vai dizer: “Convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça toda a nação.” (Jo 11, 50) Não é por menos que Jesus não quisesse continuar em uma religião que sacrifica uma pessoa para se proteger perante a sociedade e agradar aos seus membros, sem se preocupar com a verdade de fato, ainda que defendendo suas leis.

32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele.

O sono de Pedro e dos companheiros é recorrente. Às vezes me pergunto, por que os evangelistas insistiam em dizer que os apóstolos e discípulos tiravam os seus cochilos em horas cruciais, se não seria um índice e um alerta para a igreja nascente, dos primeiros cristãos, de que o peso do sono fecharia os olhos daqueles “ocupados em nada fazer” (2 Ts 3, 11), mesmo sendo as pessoas mais destacadas da comunidade, que só acordariam depois, no final da cena, quando já não pudessem fazer mais nada; além de perderem o fio da ninhada. Quantos detalhes não se perderam daquela conversa! Talvez eles não devessem mesmo saber tudo o que se passou no Tabor, nem no Getsemani (Lc 22, 45s).

33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo.

Quem de nós diria ao príncipe da Igreja que ele não sabia o que estava dizendo? Só mais tarde a história poderia confirmar ou nos dar autoridade, como deu esta certeza ao evangelista Lucas. Também não é por menos que alguns Papas tiveram a hombridade de reconhecer o engano dos seus predecessores, portanto, que não sabiam o que estavam dizendo, quando disseram algumas coisas sobre ciência e até religião. Sei que é uma situação extremamente delicada essa de se desculpar depois. Passam anos e, em certos casos, nem se pede perdão a quem foi ‘enganado’. O tempo passa e com ele as suas ideias também. O que nos garante que no futuro pedirão perdão pelos enganos de hoje. Quem de nós diria aos homens de Igreja em que eles já não sabem o que estão dizendo?

34 Ele ainda estava falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem.

Veja se esta narração não lembra a Anunciação do Arcanjo Gabriel a Maria, mas, sobretudo, a nuvem que preenche a Tenda da Reunião, que Moisés não podia entrar. (Ex 40, 34s) Naturalmente o leitor já identificou essa sombra com a presença do Espírito Santo. Atine também para este clima maravilhoso que traz a vida no espírito e que exige uma iniciativa redundante e corajosa do fiel de ‘entrar dentro’, entrar mesmo, não beirar ou assistir de fora, como fazem muitos que se dizem cristãos e Moisés que ficou de fora. Existe outra atitude que definirá o orante nesta cena, o medo, melhor, a coragem de permanecer dentro, mesmo na penumbra. Quantas vezes encerramos nosso ‘êxtase’ espiritual por causa do tempo ou covardia do confronto, quando o assunto começou a revelar as consciências. Sim, entrar nesta nuvem faz medo.

35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”

O medo é algo natural a todos nós. Deus também nos dá incertezas. Nem tudo está claro e definido na nuvem do Tabor. Até o brilhantismo dos profetas e a segurança da lei, segurança de muitos, perdem sua nitidez para dar lugar ao que a voz dizia: Escutar Jesus! Não há aqui outro ensinamento ou conselho que nos guie na vida, pois há escuridão mesmo entre os espirituais, e não se deve deixar o medo guiar a vida de quem reza. Escutar Jesus é o ensinamento mais básico do cristianismo e ao mesmo tempo a guinada, o up (inglês = para cima) da fé, o diferencial, aquilo que se deixa de fazer no fracasso da espiritualidade.

36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.

Agora entendemos por que Pedro não sabia o que estava dizendo. Não era para ficar em tendas na montanha. Ali não era o objetivo da missão e do ensinamento de Jesus. Embora fosse bom ficar na glória dos profetas e no mérito da Lei, Jesus reservava outra revelação que carecia de um ingresso muito íntimo no profundo deles mesmos, ainda que com medo, a fim de serem, também eles ungidos pela sombra do Espírito, tocados pelo seu mistério e encontrassem a certeza que os faria atravessar o vale tenebroso da sombra da morte (Sl 22, 4).

Este segundo domingo da quaresma, segundo o evangelho de S. Lucas, traz um convite ainda mais corajoso que a luta travada contra as tentações, a saber, ir além das aparências da religião de satisfação. Jesus está a caminho de Jerusalém e sabe que enfrentará as autoridades constituídas de seu povo. Sabe, porém, o que eles não sabem: Sabe a quem serve e para que veio. Já aquelas autoridades não sabem mais a quem servem e há muito trocaram a sua fé pela cumplicidade política entre religião e império romano. Não entendo como aquela fé não pode apresentar ao mundo um ensinamento novo e foi se tomando do medo de ser diferente, de sair das nuvens e descer do alto das montanhas.

A postura mais cômoda para qualquer estadista é mesmo atrelar o seu vagão em outro e não arcar com o peso de puxar o trem ou remar contra a maré. Não precisamos de rebeldes sem causa ou profetas sem convicção; precisamos de Jesus e de pessoas que hajam como se fossem Ele. Creio que isto basta para definir a espiritualidade de alguém, se diz e faz o que Jesus diria e faria se estivesse em seu lugar. Já imaginou se olhássemos para as pessoas nos perguntando se Jesus faria assim? Já se imaginou se perguntando se Jesus teria feito o que você fez e disse?

Desejo a você uma Quaresma de jejum, esmola e oração. Faça de Jesus o seu espelho e veja se é Ele quem você vê quando se olha nele. Boa semana e reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
21.02.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira